segunda-feira, 5 de março de 2007

Editorial Devarim #3

Este é o editorial da 3ª Devarim que é a revista da ARI, nossa sinagoga. Minha mãe, Marina Gottlieb, é quem assina esse texto.

Estamos vivendo de fato tempos difíceis. De apatia intelectual, de anti-semitismo aberto, de aumento violento do fundamentalismo. A tendência é escutar menos e falar mais, pensar menos e julgar mais, tolerar menos e bater mais.

Progressos da tecnologia, como a Internet, e da economia, como a globalização, são confundidos como desenvolvimento humano, quando na realidade são apenas ferramentas que somente se utilizadas de forma iluminada causarão alguma evolução no bem estar da humanidade.

O obscurantismo moderno não difere do passado. Sua raiz continua sendo a violenta disputa pelo poder, que para se perpetuar precisa inibir o livre pensamento e a exploração intelectual especulativa.

As novas características são as táticas de desinformação em massa e as alegações hipócritas e pseudo-científicas de que o direito à dominação do próximo é justificado como uma característica cultural e portanto inalienável.

Em 1670, em seu Tratado Político-Teológico, Baruch Spinoza criticava o obscurantismo de sua época. Ele começa a obra alertando para a tendência do clero em sedimentar crenças supersticiosas nas pessoas (manipulando suas emoções) de forma a ter controle sobre elas. Um ser guiado pelo medo e pela esperança seria facilmente manipulável para atingir os objetivos de poder. "Esforços imensos foram feitos para impor a religião, verdadeira ou falsa, com tamanha pompa e cerimônia que ela poderia suportar qualquer choque e ainda assim continuar a suscitar a mais profunda reverência em todos seus seguidores." (Tratado Político-Teológico, Prefácio – tradução livre).

A revista Devarim pretende ser mais uma voz contra o obscurantismo moderno, seja qual for sua origem ou vestimenta.

A sedimentação da idéia de que nascemos livres é muito frágil na história da humanidade – o homem sempre tendeu a querer dominar o próximo, tanto física quanto psicologicamente. Apesar da liberdade inata aparentar ser um conceito natural e absoluto, na verdade temos que lutar por ela permanentemente.

Muito freqüentemente o judaísmo progressista é tolamente rotulado como um "judaísmo light". Este pensamento, além de ignorante e preconceituoso, carece de fundamento histórico. A realidade é que o judaísmo sempre foi progressista e sempre evoluiu conforme as necessidades dos judeus. A abertura para a interpretação dos textos é constante e não foi suprimida em momento algum da nossa história, por mais que os comentaristas pós Shulchan Aruch (século XVI EC) sejam curiosamente rotulados como “os últimos” (acharonim). São os últimos, mas nenhum é o último.

O Rambam (Maimônedes – século XII EC) postulava no Guia dos Perplexos que o principal fator que impede o verdadeiro amor a Deus é a crença de que a interpretação literal da Torá seja o único caminho para permanecer fiel a seus valores. Segundo Rambam, o resultado da interpretação literal é a materialização de Deus, que resulta em idolatria.

Os textos bíblicos são atemporais porque não são registros históricos nem tratados científicos. Eles devem ser interpretados à luz do conhecimento e das necessidade do homem contemporâneo. De nada serve especular se de fato o Mar Vermelho realmente se abriu. No entanto a história do Êxodo é fundamental para a civilização, e serviu de base para todos os movimentos libertários modernos. É também ainda muito valiosa nos dias de hoje a idéia de que nossos antepassados foram escravos, e portanto não somos melhores que ninguém, nem temos o direito de oprimir o próximo.

Se perdermos os valores em detrimento à leitura literal, além de não estarmos praticando judaísmo, não estamos contribuindo em nada para com a humanidade.

Não, nós judeus progressistas não temos todas as respostas, e nos ocupamos a maior parte do tempo em colecionar e catalogar as perguntas. No entanto sabemos diferenciar entre obscurantismo e iluminação e este é o ponto de partida para a busca ativa das idéias que promovem a liberdade em todos os seus sentidos.

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